30 de nov. de 2010

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A vida é um novelo que alguém emaranhou.
Fernando Pessoa


Entre os dentes o gosto de ferro, no tremor das mãos o nervosismo. A câmera dá um close nas duas bocas se encontrando, a imagem escurece aos poucos, as silhuetas desaparecem gradualmente, quase não existem. Se não fosse o leve som dos ponteiros do relógio se movendo a platéia já estaria retirando-se da sala. Não se movem, observam a escuridão como se pudessem ver através dela, como se pudessem compreender. Não compreendem, não podem ver. Uma longa linha se desenha, são duas, três, são incontáveis. Gotas de chuva se estilhaçando contra o asfalto, um gato siamês boceja, uma mulher asiática conta moedas em uma esquina. O áudio é ruidoso, a imagem tem falhas, o beijo chega ao fim. Um homem calvo tenta na escuridão do cinema ler a sinopse do filme, as letras parecem evaporar do papel, elas grudam no teto, escorrem pelas paredes, pingam no chão. E como se uma cena de suspense houvesse chegado ao ápice, os espectadores tremeram em suas macias poltronas. Um fio se partiu, uma explosão explode em mil explosões na tela. Entre os dentes o sabor da realidade, o tremor das mãos refletindo a inquietude da mente. A câmera foca nas nuvens sobre os prédios, os prédios logo desaparecem, as nuvens logo se dissipam. Só sobrou você. 

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