carpo metacarpo

8 de mar. de 2011

iii

Prefiro pensar que tudo isso que eu sinto aqui dentro se chama indigestão, e não solidão.
A cela está aberta, mas agora sou eu quem não quer sair. 
Eu fico mais velho, mas ao invés de aumentar pareço diminuir. 
Um dia vou ser tão pequeno que, no meio dos seus lençóis ele irá me esmagar. 
Eu gostaria de saber se ele continuaria me amando depois de reduzido a uma pasta de ossos e sangue. 
Aí eu gritei pra um céu, que de tão grande eu pensei que poderia ser meu amigo. 
E como todos aqueles que um dia eu pensei terem sido meus amigos, um dia eu acordei e o céu não estava mais lá.
As janelas estão todas quebradas. 
A parede mostra os sinais do desgaste.
No pátio a poeira se acumula, com as teias e os insetos mortos.
-A casa está desmoronando - eu disse pra minha mãe sobre a casa.
Ela respondeu que não tem tempo nem paciência pra arrumar tudo.
Fiquei com medo de dizer que eu também estou.  

1 de jan. de 2011

ii


Sempre quis voar. Não muito diferente de todos os que já viram algum pássaro cortar alguma nuvem por aí. Fica difícil entender por que não temos asas, por que nossa liberdade é tão limitada. Sempre quis voar, mas diferente de todos os que já admiraram o vôo de um pássaro por aí, eu descobri que posso criar minhas próprias asas.
Os muros já não são suficientes, minhas asas já não se escondem sob as roupas. As penas se soltam pelas mangas da camisa. Ainda ando pela casa, meu único mundo, minha única dimensão, ainda ouço o som das correntes arrastando, o som que me acostumei a ouvir. Ainda abraço as pessoas que já não me identifico, aquelas que já me acostumei a ter, aquelas que o meu egoísmo já tragou. Ainda tenho a impressão de ter nascido errado, mas o problema não sou eu. O problema é o mundo. A inadequação me ensinou a viver, mas preciso me livrar dela, antes que me torne inadequado demais até para mim mesmo. Ainda vejo a vida pela janela do quarto.
Olho a vida através de um vidro, de vez em quando ele embaça, mas o que acontece se um dia ele quebrar? Pressiono os dedos contra as fissuras da janela. Fecho os olhos. Ouço os estilhaços. Fecho os olhos para o quarto. Abro os olhos para a vida. Eu caio, mas caio seguro, tenho minhas asas.  A queda segue lenta. As asas falham. Começo a duvidar se um dia elas existiram. O chão estilhaça os vidros, os meus ossos, o meu sorriso. Com o rosto no chão e consciência escorrendo pelo asfalto. Vejo as penas caírem lentamente, dançando com o ar elas caem ao meu lado, leves, brancas e puras. Então eu percebi. Minhas asas estavam lá, mas eu nunca aprendi a voar. 

30 de nov. de 2010

i

A vida é um novelo que alguém emaranhou.
Fernando Pessoa


Entre os dentes o gosto de ferro, no tremor das mãos o nervosismo. A câmera dá um close nas duas bocas se encontrando, a imagem escurece aos poucos, as silhuetas desaparecem gradualmente, quase não existem. Se não fosse o leve som dos ponteiros do relógio se movendo a platéia já estaria retirando-se da sala. Não se movem, observam a escuridão como se pudessem ver através dela, como se pudessem compreender. Não compreendem, não podem ver. Uma longa linha se desenha, são duas, três, são incontáveis. Gotas de chuva se estilhaçando contra o asfalto, um gato siamês boceja, uma mulher asiática conta moedas em uma esquina. O áudio é ruidoso, a imagem tem falhas, o beijo chega ao fim. Um homem calvo tenta na escuridão do cinema ler a sinopse do filme, as letras parecem evaporar do papel, elas grudam no teto, escorrem pelas paredes, pingam no chão. E como se uma cena de suspense houvesse chegado ao ápice, os espectadores tremeram em suas macias poltronas. Um fio se partiu, uma explosão explode em mil explosões na tela. Entre os dentes o sabor da realidade, o tremor das mãos refletindo a inquietude da mente. A câmera foca nas nuvens sobre os prédios, os prédios logo desaparecem, as nuvens logo se dissipam. Só sobrou você.